[afetos] o amor antes do tempo
o amor não é aonde quero chegar, mas como eu quero caminhar.
o tempo, às vezes, é lâmina.
acordei atravessado por memórias, pensativo sobre o fio do acaso. essa lâmina afiada que, sem aviso, rasga o tecido da realidade — e às vezes vem com tanta força que fere e sangra quem a veste.
olhei no espelho e mirei meus próprios olhos como um sítio arqueológico. meu olhar era espátula e, ao mesmo tempo, terreno escavado. estratigrafia viva, desvendando camadas. cada corpo carrega suas eras. se o círculo completo da terra em torno do sol for uma delas, meu corpo carrega trinta e sete. num cálculo rápido, recordei: a idade que meu pai tinha quando nasci.

mas meu marco temporal foi outro. há um calendário riscado fundo no corpo. então fiz as contas e imaginei quais camadas meu rosto carregará daqui seis anos e alguns meses, quando terei a idade que meu pai tinha ao ser assassinado — quarenta e quatro anos siderais. o tempo, às vezes, é lâmina.
peço desculpas se essa escritura se tece por uma linha triste, mas acredite, este não é um texto sobre perda e luto, mas sobre o amor e a alegria. só que não consigo bordar esse tecido sem tomar um fio que começa na morte do meu pai — e com a qual aprendi uma preciosa lição sobre o tempo: a sua fortuita finitude.
não falo dessa lição como se houvesse na morte de meu pai algo especial, uma sina determinada por algum deus do destino que carregasse um ensinamento celestial a ser aprendido, um enredo a ser descoberto, uma revelação a ser desvelada. o acaso é mais duro e, por isso, não perde o fio afiado. pouco se importa com os aprendizados. seres acordam e vivem seus dias. em algum deles, para alguns mais cedo que tarde, se morre. em algum deles, para alguns mais cedo que tarde, se mata.
em algum momento, mais tarde do que gostaria, precisei abandonar a narrativa da tragédia pessoal ou familiar e a fantasia egóica que a mantinha viva. foi justamente ao defrontar a banalidade dessa história que entendi a banalidade com que o fio do tempo nos trata. minha contagem de voltas no sol, meus calendários pessoais gravados com cicatrizes, pouco importam para ele. de que adianta a angústia no espelho, perguntando quanto tempo tenho, se é, afinal, o tempo que me tem?
de certo, seis anos e alguns meses parecem tão pouco. me perguntei se daria tempo para lançar no mundo amor suficiente para gestar a vida de um filho ou se daria tempo da semente de uma pitanga deliciosa que provei recentemente, e estou cultivando à espera de provar novamente aquela doçura, ser uma árvore frondosa e multiplicar seu sabor. tão pequenina e frágil ainda é essa mudinha nesse vaso à minha frente. tão pequenino e frágil é uma criança entre seis e sete anos. cultivar florestas (de amor feito fruta ou feito gente) é cultivar futuro, na incerteza de se estaremos nele.

é dessa percepção da finitude do tempo que advém um dos meus principais incômodos com a forma que construímos nossa disposição para o afeto e para o cultivo de relações. há um termo conhecido no campo das críticas à monogamia, que foi popularizado pela amy gahran, que é a “escada rolante relacional” (relationship escalator). esse termo se refere a um dispositivo de regulação da intimidade, que atua cotejando, com uma aparente inércia, tempo e afeto. a cada degrau subido de tempo vivido, autoriza-se a destinação de mais afeto, numa escalada do “amor verdadeiro” — seja lá o que isso signifique.
um pouquinho de afeto quando se flerta, aumenta-se a dosagem quando se toca e vai crescendo com a frequência. uma comporta se abre se há título e exclusividade, e há uma progressão funcional num estabelecido e reconhecido plano de carreira: ficante, namorado, noivo, marido. a importância na vida, a preciosidade na história, o zelo no cotidiano, o prestígio na comunidade, a legitimidade no cuidado — tudo cresce impulsionado pelo motor dessa escada, que estabelece como amamos, como cuidamos, como coabitamos, como construímos reciprocidade, como planejamos o futuro, como morremos e como serão distribuídos nossos bens.
há muito o que se pensar sobre os impactos dessa escada rolante, nas relações e na subjetividade. há muito o que investigar sobre o seu motor, suas engrenagens, seu combustível e o tamanho do empenho que é necessário para manter sua aparente automática subida. mas hoje, quero aqui lançar o olhar sobre um aspecto específico dela: a relação que esses degraus estabelecem entre tempo e afeto.
realmente, não consigo entender como essa conta bate. afinal, enquanto o tempo é uma dimensão escassa e imponderável, o afeto é uma força abundante, que cresce e frutifica ao se entregar. por que regular o que tenho de abundante tomando como medida aquilo que não controlo e é escasso? por que tento medir a abundância do meu afeto com a desmedida do tempo?

não me pergunto isso como quem assumiu uma visão fatalista de futuro e por isso se move na urgência da colheita do agora — dar tudo de si na pressa do hoje, afinal: quem sabe o amanhã que teremos? pelo contrário, é a incerteza do fio do tempo que me faz ter vontade de expandir e aprimorar minha capacidade de semear futuro no agora: aprender a cultivar florestas.
isso tem me levado a um caminho amoroso. à disposição (bem trabalhosa, afinal, cultivar dá trabalho) para o amor a cada encontro. e aqui não falo somente daqueles encontros que podem levar ao prazer mútuo no erotismo ou à construção de vida em comum em algum tipo de conjugalidade, mas de uma disposição à inteireza e uma disponibilidade à troca de cuidado e à transformação pelo afeto nas mais diversas relações do cotidiano.
é por isso que falei sem medo de amor no nosso primeiro encontro, mesmo que parecesse apressado e inoportuno tomar o amor como ponto de partida e não como um próximo degrau a ser alcançado — seja pelo mérito da conquista, seja pelo da permanência. o amor não é aonde quero chegar, mas como eu quero caminhar.
não me interessa muito uma escada que me leve para mais altos degraus. estou um pouco cansado de edifícios, seus muros e impossibilidades. prefiro o emaranhado da vida na fertilidade dos encontros, onde cada planta cresce do seu jeito, equilibrando-se em floresta enquanto buscamos a melhor forma de partilhar a luz do sol. algumas desejam altura, outras se espalham rasteiras. algumas crescem profundas para dentro da terra, outras preferem a delicada beleza do diminuto ou do breve. diante de tantas possibilidades, quero e espero que nosso encontro encontre sua própria forma de viçar e que nosso tempo seja o do experimento cotidiano do cultivo — de si, do outro, da relação, da alegria. o tempo da criação, não, da revelação.
não sei quanto tempo temos. só queria que este tempo que nos tem seja sobre amor. acho que quando fazemos isso, cada encontro, não importa se breve, parece carregar todo o tempo do mundo. e saiba: eu gostaria, algum dia, de colher pitangas com você.
o tempo, às vezes, é cesto.
Um texto que me deu a sensação de uma floresta tropical em cujo amor é a sensação de infinito daquela composição sem fim de plantas e árvores. O que é o tempo ou a morte na floresta?
arreapiada com essa emocionante tecitura